Sarkozy pronunciou-se pela pragmática do trajar à ocidental no Ocidente, recusando o relativismo civilizacional e afirmando que especificidades não cabem no corpo da república francesa. É a velha questão da soberania do Estado sobre os cidadãos que o liberalismo francês sempre afivelou. Não há cidadania sem o acatamento do império da lei, lei que é para todos e não tolera excepções. No discurso de Sarkozy está, sem tirar, tudo o que a Revolução impôs como dogma do contrato político: o Estado é a instância de autoridade certificadora e produtor de direitos e liberdades a os cidadãos se devem submeter, no pressuposto que a vontade geral produziu um determinado tipo de comunidade política organizada em Estado. Estas questões não se punham no tão insultado Antigo Regime, onde os súbditos detinham as liberdades decorrentes das suas especificidades - regionais, profissionais, religiosas - e delas podiam fazer uso conquanto não ofendessem a ordem pública.
A burca é um pretexto e não podemos exagerar-lhe a importância. Quem diz a burca, diz a djebala, a exibição de crucifixos ao peito, o kipá judaico, as botachas madeirenses ou a branqueta e o saiote dos sargaceiros da Apúlia. O trajo "europeu" é invenção da burguesia e não me parece que é no trajar que se pode ofender a ordem pública. Quando a vaga ocidentalizadora se abateu sobre os Estados em busca de respeitabilidade e reconhecimento pelas potências ocidentais, as autoridades locais impuseram a pragmática ocidental no trajar, da Turquia ao Egipto, do Sião ao Japão. Estar vestido à ocidental era exibir civilização.
Contudo, a verdade é que a burca passou a ser nos últimos dez ou quinze anos um elemento carregado de intencionalidade para quem o veste. Na Europa, quer dizer : "eu não me submeto às vossas leis", "sou contrária às leis que proclamam a igualdade da mulher e do homem", "a minha tradição específica está acima do império das vossas leis". É um declarado acto de provocação, sem dúvida, podendo ser interpretado como auto-exclusão e, até, recusa de um tipo de sociedade e dos valores sobre os quais esta se estabelece. No sudeste-asiático anterior à recepção do fundamentalismo islâmico, as mulheres há muito que haviam deixado de exibir os véus, os crepes e as máscaras. Só quando as multimilonárias fundações árabes iniciaram a política de difusão de um certo modelo de islão - o wahhabita - e os iranianos levaram para Teerão milhares de bolseiros oriundos da Malásia, Indonésia e Tailândia, as falsas "raízes" do Islão voltaram a fazer moda entre populações com substrato absolutamente distinto do árabe ou do iraniano.
Espanta-me que os muçulmanas se deixem subjugar pela burca. Vejo, com frequência, aqui na Tailândia, milhares de turistas oriundos do Golfo. Eles, de calções e camisas de alças, cuspindo altaneiramente na tradição do "trajar à árabe"; elas, cobertas de negro da cabeça aos pés, com mascarilha ou véu, docilmente submetidas à tradição. Aqui reside a certeira crítica. Para o Islão dito moderno, a mudança é aceite pelos homens e para os homens. Para as mulheres, o chicote da tradição. Neste aspecto, Sarkozy tem plena razão. Felizmente, a "revolução islâmica" parece estar a aproximar-se do fim. Teve o seu período de expansão e contaminação, mas no seu elã não conseguiu evitar discutir com o mundo moderno aquilo que não é específico e local, mas universal. O Islão vai perder, pois não mais fez que agarrar-se desesperadamente a um tipo ideal sociedade e à mítica ideia a-histórica da superioridade da "civilização árabe". Podem estar certos que ainda veremos de novo as iranianas de calções e as muçulmanas do sudeste-asiático de cabelos ao vento. A hipocrisia acaba, sempre, por perder.
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