domingo, 30 de agosto de 2009

O FENÔMENO



DEAN KARNAZES ENCHEU A CARA DE TEQUILA no seu aniversário de 30 anos, em agosto de 1992. Voltou pra casa trançando as pernas e infeliz com a vida que levava: engravatado num emprego chato, lutando para subir na vida, seguindo a boiada sem questionar o porquê. Nos fundos de casa, achou um velho par de tênis. Fazia muitos anos que ele não os usava para uma corrida - desde os tempos de colégio, quando participava de corridas de montanha e provas de atletismo. Vestiu os sapatos e tirou as roupas, deixando só as cuecas samba-canção e a camiseta. E saiu correndo para parar só 48 km depois. Ele se sentiu ridículo, mas também feliz como há tempos não acontecia. E percebeu que tinha dentro de si um potencial secreto, esperando para ser descoberto e explorado.

Desde então, Dean vem desafiando todos os limites imagináveis da resistência humana, sem nunca encontrar o seu próprio. Correu 560 km sem parar (levou mais de três dias). Venceu a Badwater, ultramaratona de 215 km que é considerada a prova a pé mais dura do mundo. Escreveu um livro, O Ultramaratonista, que se tornou best seller e que acaba de ser lançado no Brasil. Mais recentemente, encarou o Endurance 50, um desafio em que correu 50 maratonas em 50 dias consecutivos, uma em cada estado norte-americano. E agora está entre os indicados para a lista das cem pessoas mais importantes do mundo, elaborada anualmente pela revista Time. Como conseguiu tudo isso? É simples, como você perceberá nesta entrevista exclusiva: não há nada que Dean Karnazes ame mais do que correr pelas montanhas, centenas de quilômetros a fio.

Como exatamente a noite de bebedeira te transformou num ultramaratonista?
Dean Karnazes: Eu me perguntei: "Como seria uma vida perfeita?". Nela eu passaria bastante tempo com minha família e fazendo o que amo, que é explorar os limites da resistência humana. Depois dessa noite, passei anos conciliando a vida empresarial e esportiva, até que decidi viver só do esporte.

Logo em sua primeira corrida "adulta", você fez 48 km. Você acha que tem algum tipo de predisposição genética que te permite suportar tão bem o esforço?
Sim, não sou muito inteligente [risos]. Brincadeiras à parte, acho que tenho uma biomecânica e um alinhamento muito bons - dois fatores essencialmente hereditários. Dizem que a melhor coisa que você pode fazer como ultramaratonista é escolher bem seus pais [risos]. Fora isso, sou um cara normal. Acredito, de verdade, que qualquer um pode fazer o que faço se for apaixonado por isso, treinar e se sacrificar com tanta aplicação quanto eu. Não sou único.

Numa semana normal, quando você não está correndo uma maratona por dia, qual é sua rotina?
Acordo às 4 da manhã e corro 30 a 40 km por um percurso lindo, pelas trilhas de montanha ao longo do Pacífico. Preparo o café-da-manhã e levo as crianças pra escola. Entre os e-mails, telefonemas e o tempo que passo escrevendo, faço séries de abdominais, agachamentos e barras. Pode soar engraçado, mas não me sento para trabalhar. Isso me deixaria louco. Comprei uma mesa alta, onde coloquei meu laptop. Fico de pé em frente a ela. E se alguém quiser fazer uma reunião comigo, será uma reunião andando, correndo ou trotando. As reuniões "móveis" são muito mais eficientes. Três ou quatro vezes por semana, aproveito as tardes para fazer windsurf, andar de mountain bike ou surfar.

E as táticas mentais para cruzar a linha de chegada numa prova particularmente difícil?
Uso uma técnica que chamo "passos de bebê". Na primeira vez que corri 320 km, houve um momento no 260 em que eu não conseguia levantar da sarjeta. Já tinha corrido 40 horas sem parar e mal ficava de pé. Pensei: "Não vou conseguir correr mais 60 km". Então mudei meu paradigma. Disse a mim mesmo: "Não pense nos 60. Foque em se levantar". Tentei, tentei e finalmente fiquei em pé, e comemorei essa vitória. "Ok, agora vá até aquela placa no fim da rua". Fui e disse: "Muito bem, agora até aquele poste". Fiz isso incontáveis vezes e depois de dez horas cruzei a linha de chegada.

Pergunta técnica. Bolhas, você as estoura ou não?
Estou com duas bolhas agora, porque corri na chuva e as meias ficaram molhadas. Uma delas eu estourei, a outra não. Se estiver tão inchada a ponto de doer, estoure. Mas se estiver baixa e não piorar quando você coloca o tênis, eu acho melhor tentar correr sem mexer nela. A melhor maneira de tratar uma bolha é não tê-la. Gosto de usar Bodyglide [pomada importada, feita com triglicérides, aloe vera e vitamina E, que lubrifica a pele e elimina a abrasão] nos pés. Tenho amigos que usam talco para manter os pés secos. Eu não gosto.

O que você bebe e come durante seus treinos de corrida?
Eu corro com uma mochila de hidratação com bebidas esportivas. Levo umas barras energéticas e às vezes um pouco de "misturinha" de castanhas e frutas secas. Também levo uma grana, assim posso me reabastecer em algum lugar no meio do caminho, se precisar.

Você não correu durante 15 anos. Já parou pra imaginar o que teria acontecido se nunca tivesse parado? Que distâncias você estaria correndo hoje?
É assustador imaginar [risos]! Sim, fiquei um tempão sem correr. Mas, uma vez um corredor, sempre um corredor. O espírito não desaparece.

O corpo humano é capaz de feitos extraordinários, você diz. Você acredita que a carga a que sujeita seu corpo - correndo mais do que qualquer ser humano já correu, dormindo somente quatro horas por noite - cobrará seu preço?
Se eu achasse que estou judiando do meu corpo, eu pararia. Fui examinado, analisado, cutucado, e segundo todos os testes, estou agüentando muito bem. Não há sinais de danos, ao contrário: quanto mais duro eu treino, mais forte eu fico.

Chris Carmichael te comparou a Lance Armstrong. No que você se identifica (ou não) com ele?
Lance é um ídolo, mas somos bem diferentes. Ele sempre foi um atleta profissional, enquanto eu estudei, fiz faculdade e depois trabalhei no mundo corporativo por muitos anos. Corrida e esportes eram, até recentemente, um hobby, algo que só agora se tornou o meu meio de vida. Acho que Lance e eu temos em comum a resistência mental. Admiro o cara tremendamente, não só porque ele é um grande atleta, mas também porque arrecadou milhões de dólares para as pesquisas sobre o câncer.

Como é sua recuperação? Quanto você precisa descansar depois de uma corrida de 60 ou de 120 km?
Depois de uma corrida de 60 km, estou bem para correr no dia seguinte. Descobri que meu "limiar" é 110 km. A partir daí, preciso de alguns dias para me recuperar. E sou fã de carteirinha dos banhos de gelo para ajudar a recuperação.

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